Opinião: "O Cultivo das Flores de Plástico" de Afonso Cruz

Por incrível que pareça é o primeiro livro que leio de Afonso Cruz. Não sei se foi por causa dos títulos, ou por causa das capas, que não me tenha interessado por ele antes. Mas desta vez teve de ser. Escolhi-o para começar o ano, logo a seguir a uma leitura abismal. Mas não há dúvidas. Afonso Cruz ultrapassou o desafio.

Por norma, quando lemos um livro extremamente bom, ficamos com a chamada "ressaca literária". Nessa altura, meus amigos, o segredo é pegar em algo completamente diferente e pequeno. Foi por essas duas razões que escolhi "O Cultivo das Flores de Plástico".

Gostei do tipo de escrita do autor. Nota-se que se trata de uma peça, por isso a linguagem é simples, sem subterfúgios, quase crua. Um óbvio contraste 
com o conteúdo da história.

Eles são quatro. Vivem na rua. São todos diferentes, mas todos são sem-abrigo. 
Temos o Jorge, que já vive na rua há alguns anos por causa do seu mau feitio, diz ele, mas que ainda consegue ver o lado bom da vida. Ele é a esperança de que a bondade venha ao de cima em todos nós.

"Faço coisas pequenas, pequenas bondades, não é preciso ser Deus, basta fazer pequenas coisas e elas crescem e um dia alastrar-se-ão pelo mundo como uma daquelas pragas medievais. Estou a infestar o mundo com estas sementes. A plantar Deus. Como não existe, faço o que Ele devia fazer"

Temos depois o Couraçado Korzhev, um suposto ex-marinheiro russo que foi abandonado pelos seus camaradas em Lisboa apenas por ter um tom de pele diferente. Passa a vida a dobrar mapas e anda com uma série de conchas no bolso para poder ouvir o mar.

Lili é uma rapariga cuja história não percebi totalmente, mas que entendi ser uma sobrevivente de maus tratos. Passa a vida a tentar encontrar a sua casa, experimentando as chaves que carrega em todas as portas.

Finalmente a Senhora de Fato. A única que aparentemente "ainda" não sobre de nenhuma perturbação psicológica, por ter chegado recentemente à rua. Esta foi a personagem que mais me marcou. A prova provada que a distância entre nós e "eles" não é assim tão grande. Basta um deslize, uma escolha errada e tudo muda.

Esta é uma história que depois de lida nos fica agarrada à pele.  Não só pelas verdades que encerra, como pelas coisas que não são ditas, mas que nos fazem pensar.

Até a própria cena de tortura animal, que me custou horrores ler e que tentei "passar por cima", é o testemunho do quão insensíveis nos tornámos para com estas pessoas. Escandalizamo-nos com o relato do cão, mas não com as histórias dos sem-abrigo.

Não percam esta leitura. É um livro absolutamente indispensável. Brutal!

"Andamos a regar flores de plástico, é isso que fazemos. Temos coisas que não servem para nada. É tudo plástico. E nós regamos essas flores e esperamos que cheirem a coisas boas. Mas é plástico. Temos coisas, em vez de tentarmos ser felizes, substituímos a vida por plástico, a felicidade por plástico e o próprio plástico por plástico. Trabalhamos para regar uma vida destas."
Em www.bertrand.pt

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