"Os Cães de Babel" de Carolyn Parkhurst

«Soubera eu ontem o que sei hoje, teus olhos cinzentos teria arrancado, por dois olhos de barro teria trocado.
Soubera eu ontem que deixarias de ser meu, teu coração de carne teria arrancado por um de pedra teria trocado.»

Sinopse:
No dia em que Lexy Ransome perde a vida ao cair da macieira do jardim de sua casa, Paul Iverson, o marido, compreende que a partir daquele momento toda a sua existência será pautada pela devastação da perda da mulher que amava. Atormentado pela dúvida quanto ao que realmente aconteceu, Paul embrenha-se numa investigação obsessiva dos vários indícios misteriosos que vai encontrando em casa e que o levam a crer não ter sido a morte da mulher acidental. A única testemunha do que se passou é Lorelei, a cadela, e Paul entrega-se à tarefa hercúlea de ensinar Lorelei a comunicar numa tentativa desesperada de chegar à verdade dos factos. Um romance poderoso e original, que nos revela os caminhos do amor e da sensibilidade feminina.

A minha opinião:
Mais uma vez devia ter dado ouvidos à minha mania anti-sinopse. Foi exactamente a sinopse e a sua promessa de dor e angústia pela morte de um conjuge que me fez adiar tanto tempo esta leitura. Leituras pesadas nem sempre são bem vindas (já nos bastam por vezes as complicações da vida). Mas na verdade não se pode dizer que seja exactamente uma leitura pesada. Muito pelo contrário.
A história por si só, é fascinante. Escrita num tom encantador, muito carinhoso, somos apresentados à dor e atordoamento de Paul, cuja mulher caiu de uma macieira sem que fosse óbvio o suicídio. Ele leva-nos a passear pelas recordações do seu casamento, nem sempre fácil, mas sempre rico em sentimentos, onde o amor sem dúvida que predominava. Lexy não era uma pessoa simples, mas era a sua excentricidade que a transformava em alguém inesquecível para quem a conhecia. O que Paul não sabia é que a sua excentricidade também escondia toda uma angústia, que que a assolava silenciosamente e a qual ela nunca conseguiu realmente vencer.
A relação com Lorelai, a sua cadela, o plano a que ele se propôe e que nos revela o profundo desespero a que a sua alma estava sujeita, a investigação insiste em levar a cabo, tudo nos envolve e nos impulsiona a continuar a ler, querendo com todas as nossas forças, que Paul chegue a uma conclusão.
Foi sem dúvida uma leitura lindíssima e cheia de pormenores enternecedores e conclusões magníficas.

«Recordo a minha mulher de branco. Recordo-a a caminhar para mim no dia do nosso casamento, segurando um ramo de flores vermelhas e recordo-a afastar-se de mim colérica, o corpo rígido como uma pedra. Recordo o som da sua respiração enquanto dormia, e o seu corpo nos meus braços. Recordo, recordarei sempre, que ela trouxe consolo à minha vida e também dor. Que por cada momento negro que vivemos juntos, houve um momento de um tal esplendor que quase não consigo encará-lo. Procuro recordar a mulher que ela era e não a mulher que eu construí a partir de peças soltas para me reconfortar no meu luto. E descobri, à medida que os dias passam e o bálsamo do meu perdão aplaca a superficie gretada e ressequida do meu coração, descobri que recordá-la como ela é um presente que posso oferecer a ambos.»

Uma passagem que achei muito interessante foi também esta, onde Paul lê o último sonho inscrito no caderno de sonhos de Lexy (desde os seus onze anos que ela apontava os sonhos que tinha assim que acordava):
«"Sonhei que me tinham aberto e descoberto que eu tinha dois corações. O segundo era pequeno e de uma cor diferente. Estava oculto debaixo do coração principal, por isso não o viram a princípio. Fiquei muito admirada quando me contaram isso, mas o médico disse que era absolutamente normal. Disse que a maioria das pessoas tem dois corações, só que nunca sabemos."
Sinto-me intrigado com este, e não apenas por ser o último. Não é verdade que cada um de nós tem dois corações? O coração secreto, enrolado lá atrás como um punho, vivendo nodoso e encolhido atrás do coração normal e exposto que usamos todos os dias. Recordo uma noite, há cerca de um ano, em que estava deitado ao lado de Lexy, sem conseguir adormecer. Sabe-se lá porquê, comecei a pensar numa mulher que conhecera na faculdade, uma mulher com quem andara apenas umas seis ou sete semanas. Não fora uma relação significativa, pelo menos para ela, mas eu tinha-me apaixonado e embaraçava-me descobrir que, todos estes anos depois, ainda me sentia magoado por ela não ter correspondido. Como é possível, interroguei-me, que se possa estar deitado na cama ao lado de uma pessoa que se ama total e apaixonadamente, uma pessoa a quem se quer mais do que à própria vida,  e ainda sentir dor ao pensar naquela que nos magoou há tantos anos? Somos atraiçoados por esse nosso segundo coração, cuja carne está escura como a ponta de um dedo à qual se enrolou firmemente um cabelo, e se tornou azul devido à falta de sangue. A sua torpe opressão. Naquela noite, com Lexy a meu lado, fiquei surpreendido por me descobrir ali. Fiquei surpreendido por descobrir que entretanto tinha vivido uma vida inteira. E agora, aqui sentado, com todos os sonhos de Lexy no meu colo, apercebo-me de que há coisas a seu respeito que nunca saberei. Não é o conteúdo dos nossos sonhos que dá a esse segundo coração a sua cor escura; são os pensamentos que nos povoam a mente naqueles momentos de insónia em que não conseguimos conciliar o sono. E essas coisas, nunca as contamos a ninguém.»

E assim terminei as minhas leituras de Janeiro.
Foi um excelente mês de leituras! (11 livros)
Em www.bertrand.pt

O clube de leitura do meu coração.

 
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