Gosto de deixar passar algum tempo entre o final da leitura
de um livro e a elaboração da minha opinião. É quase como se necessitasse de
apurar o paladar. Sabem, como o abrir do arroz, quando se desliga o lume e deixamo-lo
sossegado por mais alguns minutinhos? Calhou por acaso eu ter um casamento na
família, entretanto. E foi como se as palavras deste autor ecoassem na minha
mente, abrindo o meu coração para sentir mais, experienciar mais, saborear mais, este prato
que é a família.
«Enfim, receita de família não se copia, não se inventa. A
gente vai aprendendo aos poucos, improvisando e transmitindo o que sabe no dia
a dia. A gente cata um registro ali, de alguém que sabe e conta, e outro aqui,
que ficou no pedaço de papel. Muita coisa se perde na lembrança. Principalmente
na lembrança de um velho já meio caduco como eu. O que este veterano cozinheiro
pode dizer é que, por mais sem graça, por pior que seja o paladar, família é
prato que você tem que experimentar e comer. Se puder saborear, saboreie. Não
ligue para etiquetas. Passe o pão naquele molhinho que ficou na porcelana, na
louça, no alumínio ou no barro. Aproveite ao máximo. Família é prato que,
quando se acaba, nunca mais se repete.»
Como diz o ditado, primeiro estranha-se, depois entranha-se.
Foi assim que me senti ao ler este Português do Brasil. Começa por ser difícil de
digerir, mas depois entramos no ritmo, e as palavras surgem com uma musiquinha
de fundo, talvez bossa nova, balançando esta alma portuguesa e tornando-se minhas
também. Foi uma leitura apaixonada. Pela escrita, pela história e pelas
personagens. Ricas e maravilhosas, tudo muito bem misturado com sabor brasileiro e cheirinho a Portugal.
Quem nos conta a história desta família de Viana do Castelo
que emigrou para o Brasil no início do século XX é o filho mais velho, Antonio, agora com 88 anos e que em vésperas de celebrar o aniversário com toda a
sua família, vai recordando as histórias do passado, inclusive as que não viveu,
mas que soube pelos pais ou pela sua querida tia Palma. A história do arroz, que dá nome ao título é absolutamente deliciosa! António conta que no dia do casamento dos seus pais, José Custódio e Maria
Romana, e como manda a tradição uma imensidão de arroz é lançada em cima dos
noivos, com votos de felicidade, fertilidade e abundância. Tia Palma, irmã de
Custódio e possuidora de uma alma especial , foi à noite recolher do chão todo
os bagos de arroz oferecendo-os de seguida como presente aos recém-casados.
«Este arroz - plantado na terra, caído do céu como o maná do
deserto e colhido da pedra - é símbolo de fertilidade e eterno amor. Esta é a
minha bênção.»
Se naquela altura, Custódio ficou indignado, anos mais tarde
foi forçado a reconhecer a importância do arroz e daquela bênção.
Casamentos, batizados, zangas e separações, diferentes
opções de vida e de escolha sexual, traições, mortes e sorte, tudo o que
possamos imaginar que ocorra numa família é-nos aqui relatado de uma forma
quase poética. De tal forma que nos faz sorrir, rir e chorar, e querer partilhar
e recordar, pois nela encontramos semelhanças com a nossa própria família.
«Família é prato difícil de preparar. São muitos
ingredientes. Reunir todos é um problema, principalmente no Natal e no Ano
Novo. Pouco importa a qualidade da panela, fazer uma família exige coragem,
devoção e paciência.»
Um livro absolutamente maravilhoso. A não perder.